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Inserido no contexto do racismo estrutural do Brasil, a hipersexualização dos corpos negros banaliza o homem negro e a mulher negra, objetificando-os e reduzindo-os à imagem de sexo fácil, de corpos volumosos e cheios de curvas. Um aspecto que aparece inclusive em estatísticas que mensuram a violência sexual. 

De acordo com a edição 2021 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a mais recente produzida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), as pessoas negras representam 61,8% das vítimas de feminicídio e 50,7% das vítimas de estupro e estupro de vulnerável (contra crianças e pessoas com enfermidade mental). Outros dados, do dossiê Mulheres Negras e Justiça Reprodutiva, realizado pela ONG Criola e divulgado pela Agência Patrícia Galvão, mostram que, apenas no estado do Rio de Janeiro, 1.914 mulheres negras foram vítimas de violência sexual em 2019, contra 1.010 mulheres brancas e 434 vítimas que não informaram sua cor ou raça. No mesmo período, 1.609 negras foram vítimas de estupro, contra 851 brancas e 353 de cor/raça não informada. 

Trata-se de uma realidade difícil, sentida cotidianamente pela maioria das mulheres negras, como a pesquisadora Jady Rosa dos Santos, doutoranda em Educação pela Universidade Tiradentes (Unit Sergipe). “Acho que toda mulher negra já escutou essa abordagem de um homem: ‘meu desejo é ficar com uma mulher negra’.  O nosso corpo é o tempo todo objetificado. É vivência real. Nós não somos apenas uma mulher. Eu sou uma mulher negra andando na rua”, enfatiza Jady.

A temática pode estar em voga atualmente, mas a objetificação dos corpos negros não é algo atual. O professor Gregory Balthazar, membro do Programa de Pós-Graduação em Educação e docente do curso de História da Unit Sergipe, que também coordena o Núcleo Diadorim de Estudos de Gênero da Unit. Para ele, a objetificação do corpo negro remete a um legado histórico da escravidão no país. 

“Quando o corpo negro chega no Brasil, ele é trazido como um objeto, a ser coisa de alguém. É desumanizado. As mulheres negras, para além do trabalho escravizado, tinham outra questão que era a violência sexual, como apontam autoras como Lélia Gonzalez e Angela Davis. Quando a gente fala da objetificação, a gente fala da animalização do corpo negro. Ainda hoje, quando a gente fala de objetificação, ela está muito atrelada com a questão da animalidade ainda”, destaca Balthazar.

Desde o período escravocrata do Brasil, foram atribuídos aos corpos negros características de erotização exacerbadas, como se os homens negros e mulheres negras fossem animais sexuais, sem sentimentos e sem afeto. ‘Negro da cor do pecado’, ‘mulata globeleza’ são alguns dos estigmas que insistem em ser reforçados, na atualidade, por muitos indivíduos para se referirem aos negros. 

O professor Gregory ressalta que sentir a atração, o desejo pela pessoa negra, é natural. O problema é quando há a banalização do corpo. “Não é que a gente está dizendo que não é pra ter desejo pelo corpo negro. Não é que o desejo não exista. Muito pelo contrário, não é isso. Mas, é aprisionar o corpo negro nesse lugar do animal. É o discurso que aprisiona o negro na visão animalizadora e o destitui de sua humanidade”, expressa. 

Quando se trata da mulher, uma dupla imagem é comumente associada: a mulata e a doméstica. Na imagem da mulata, está presente o estereótipo da mulher negra do carnaval, com o corpo cheio de curvas e permeado de fetiche. Já a imagem da empregada, é a que tira o protagonismo da mulher negra e a coloca no lugar de servidão, sem afeto e com desumanização. 

Na Unit, a doutoranda Jady Rosa faz pesquisas voltadas para mulheres negras e prostituição. Ela revela que, em Sergipe, no decorrer da sua pesquisa, foi possível analisar que a maioria das mulheres negras e moradoras de áreas periféricas formam a maior parte dos casos de violência sexual. “Levantamentos breves que temos feito, sobre mulheres violentadas, Sergipe tem um expressivo número de mulheres mortas de forma violenta e a maioria são mulheres negras. Grande parte das mulheres são negras e residem em regiões periféricas. Isso tudo tem a ver com a exposição da mulher negra, do corpo dela”, aponta.

Na prostituição

Conforme a pesquisa de sua autoria, há um alto índice de mulheres negras na prostituição. Ela ressalta que, em muitos casos, essas mulheres não são vistas pela sociedade. Jady lembra do contato que teve com Maria Niziana Castelino, a ‘Candelária’ (1950-2020), que presidia a Associação Sergipana de Prostitutas (ASP), foi muito atuante na defesa dos direitos das profissionais do sexo em Sergipe, e acabou contribuindo para a pesquisa.

“Se formos na região do centro de Aracaju, ainda há muitos bordéis e elas ficam nas portas esperando os clientes e a maioria são negras. Em muitos casos, devido à naturalização, a gente nem consegue ver que elas estão ali se prostituindo. Candelária me dizia que quanto mais negra, quanto mais cintura, mais esse tipo de mulher era procurada e são objeto de desejo. Um dia eu perguntei para ela: ‘Candelária e se você fosse uma mulher branca seria a mesma coisa?’ Ela respondeu: ‘Eu não sei, porque só sei ser mulher negra’”, lembra Jady. 

Vencendo o estigma

O professor Gregory Balthazar elenca que há muitos caminhos possíveis para vencer o estigma da hipersexualização dos corpos negros. Apesar do racismo ainda estar naturalizado, o espaço que personalidades negras vêm ocupando na sociedade, principalmente mulheres como Conceição Evaristo, Taís Araújo e Djamila Ribeiro, é importante e necessário. 

“Os caminhos são muitos. Uma educação etnicoracial é um deles. Outro é o empoderamento das mulheres negras, elas ocuparem espaços públicos, sociais. A cultura é um deles, na ideia da representatividade. O esforço que o movimento negro tem feito para colocar o corpo negro em lugares para além da mulata globeleza e da empregada doméstica. O difícil é o país enfrentar, enquanto sociedade, o conjunto de violência que faz parte do nosso cotidiano. Desconstruir tudo isso é um caminho. A gente caminha para algo melhor, para um lugar mais solidário e menos violento”, salienta.